Do salão nobre do Tijuca para o palco olímpico, a trajetória de Rosane Favilla, a pioneira

02.08.2020  |    1.147 visualizações

A ginasta carioca levou o Brasil a outro patamar no Mundial de 83 e orgulhosamente representou o País na primeira edição dos Jogos com Ginástica Rítmica, Los Angeles-84

Da Redação, São Paulo (SP) - Rosane Favilla certamente será notícia novamente em 2028. Quarenta e quatro anos depois, os Jogos Olímpicos voltarão a Los Angeles. O Pavilhão Pauley, da Universidade da UCLA, recebeu, em 1984, a primeira disputa olímpica de ginástica rítmica. E Rosane, carioca e sócia do Tijuca Tênis Clube, foi a pioneira, a primeira brasileira no maior evento do esporte.

Tímida a ponto de não responder à chamada de presença na escola, Rosane descobriu que podia se exprimir com o corpo. Extremamente dedicada, destacou-se no cenário nacional e brilhou no Mundial de Estrasburgo, em 1983. Com três notas na casa dos 9, a tijucana alçou a GR do Brasil a outro patamar. Mesmo com brevê da FIG e indicada pela entidade, teve que lutar bastante para representar o País na Califórnia – e fez bonito. É essa a história que contamos nesta semana, no Memória de Ouro CBG.

 

O nome dela é Rosane Favilla

A garota tímida que tinha vergonha até de dizer “presente” quando a professora lia a lista de chamada aprendeu a se expressar com o corpo e abriu as portas para a Ginástica Rítmica do Brasil nos Jogos Olímpicos

Deu branco, branco total. Quando chegou a hora de Rosane Favilla se encaminhar ao carpete do Pavilhão Pauley da Universidade da Califórnia, na fase de classificação da Olimpíada de Los Angeles, não encontrou na memória nenhum vestígio da série com o aparelho bola que iria apresentar na primeira edição olímpica com competição de Ginástica Rítmica. “Não lembrava nem meu nome naquele momento. Fui andando bem devagarinho, tentando me acalmar para recobrar a memória”, diz a carioca, que havia completado 20 anos de idade na Vila Olímpica.

Era quinta-feira, 9 de agosto de 1984. No domingo, haveria a cerimônia de encerramento dos Jogos, no Los Angeles Memorial Coliseum. A maior parte dos atletas brasileiros já havia competido e deixado a Califórnia, mas restaram alguns poucos, e parte remanescente do contingente estava ali, misturada a um punhado de torcedores de verde-amarelo, na arquibancada da UCLA. “Quando cheguei mais perto da área de competição, ouvi um grito de ‘Brasil!’, um outro gritou ‘Rosane!’. Na hora pensei: ‘Rosane, essa sou eu’. Lembrei que havia treinado muito, muito para estar lá. Havia passado por muita coisa para chegar àquele lugar. A série foi voltando à minha cabeça. Fui lá e competi, fiz o meu melhor. Fiquei satisfeita. Aquele momento era histórico não só pra mim, mas para a Ginástica Rítmica do Brasil, e eu sabia muito bem disso”, diz a tijucana, 24ª colocada ao final, com a nota 35,65.

E quais seriam as tantas coisas que Rosane teria passado até chegar ao Pavilhão Pauley? Uma das mais importantes foi uma luta para dominar a timidez. Depois de tentar gostar da natação e do tênis no Tijuca Tênis Clube, aos seis ou sete anos de idade Rosane foi inscrita pela mãe na turma de um esporte recentemente introduzido naquela agremiação, uma tal de Ginástica Rítmica Moderna. Mãe e filha simpatizavam com o ballet e, informadas de que a GR envolvia expressão corporal e música, botaram fé que a escolha por aquela modalidade era bem válida.

“Era tão tímida, mas tão tímida, que nem respondia à chamada oral quando a professora falava o meu nome. Minhas colegas diziam ‘ela tá aqui sim’ e impediam que eu levasse falta na escola. No Salão Nobre do Tijuca, onde vi as primeiras aulinhas de Ginástica Rítmica, ficava escondida atrás de uma pilastra. Mas fui espiando os exercícios, os movimentos, e fiquei encantada. A professora notou e, com muito jeito, foi me chamando. Um belo dia, senti coragem e fui fazer a aula”.

Rosane percebeu que podia expressar, com o corpo, o que não dizia com palavras. Cada vez mais apaixonada por um esporte que era também manifestação de sentimentos e linguagem, divertia-se como nunca, tirando de letra a inadequação das instalações. Espécie de coração de um dos mais antigos, populosos e tradicionais bairros cariocas, o Tijuca Tênis Clube, com suas dez quadras de tênis, três piscinas (uma olímpica) e um ginásio poliesportivo que qualquer fã de basquete já ao menos viu pela TV, entre outros espaços, não havia construído um espaço específico para a GR. Os treinos transcorriam no imponente Salão Nobre.

“Tinha uns lustres imensos lá. No teto, havia uma espécie de uns galhos decorativos. Era algo muito bonito e moderno para a época. Mas, quando a gente lançava os aparelhos para cima, muitas vezes eles ficavam presos. A gente tinha umas madeiras com ganchos na ponta pra recuperá-los, e dávamos risada. Era muito divertido quando o aparelho não voltava. O chão era de tacos e às vezes tínhamos que ir ao Departamento Médico para tirar umas farpas das pernas. Mas nosso amor ao esporte era muito maior do que qualquer pedra no caminho”.

Com esse amor todo, aliado ao talento e à dedicação nos treinos, a garota tímida começou a aparecer no jornalzinho e na revista do Tijuca. Destaque do mês, vencedora do Troféu Peralta, conferido a jovens promissores...Rosane se tornou conhecida no bairro, orgulhando a mãe, que deu início a uma enorme coleção de fotos e reportagens, e o pai, Arthur Favilla Ferreira, ex-jogador de basquete do Fluminense. O bonito espetáculo do grupo de GR do Tijuca logo estava sendo apresentado em intervalos de partidas de basquete, vôlei e handebol do clube, além de se tornar atração em inaugurações e eventos.

O talento visível de Rosane não passou despercebido por Siegfried Fischer, primeiro presidente da Confederação Brasileira de Ginástica, criada em 1978. Apostando no potencial da jovem, o dirigente quis lhe dar a oportunidade de conhecer desde logo o que era uma grande competição. Por esse motivo, enviou Rosane como reserva da Seleção Brasileira de Conjunto para Munique, sede da décima edição do Mundial de Ginástica Rítmica, realizado em 1981.

Naquela competição, a Bulgária mais uma vez deu um show, com um total de 14 medalhas, sendo cinco de ouro, sete de prata e duas de bronze. Para se ter uma ideia da dimensão do domínio búlgaro, a União Soviética, segunda no quadro de medalhas, arrebatou três peças, uma de cada cor. Com os olhos vidrados nos tablados, a adolescente Rosane sorvia cada detalhe. Se as búlgaras impressionaram com a técnica e o talento, as alemãs do conjunto ganharam o público ignorando as regras.

“As regras do conjunto não permitiam o contato físico entre as ginastas. Tudo o que as atletas poderiam fazer era o manuseio dos aparelhos e as coreografias. Mas as alemãs ganharam o público fazendo tudo o que não podiam: uma subia nas costas da outra, uma girava a outra no chão. Foi tudo muito diferente e impactante, e o público apoiou de pé. Os árbitros ficaram doidos, porque seria complicado aplicar as regras e eliminá-las. A competição ficou uns 40 minutos parada enquanto eles decidiam. Elas acabaram indo para a final e ficaram com a quinta colocação. Acho que isso deu origem a diversas modificações no código de arbitragem”, diz Rosane, orgulhosa por ter presenciado aquele momento de transformação.

Impressionada com tudo o que havia visto em Munique, Rosane reforçou sua motivação, para que um dia conquistasse a oportunidade de representar o Brasil numa competição daquela envergadura. Ela tinha participado da exibição feita pela Ginástica Rítmica na Olimpíada de Moscou, no Palácio Esportivo que integrava o complexo do Estádio Central Lênin.

“A gente foi fazer uma apresentação na França e de lá fomos para Moscou. No último dia da Ginástica Olímpica, fizemos uma demonstração da Ginástica Rítmica. Não teve caráter competitivo, foi mais um espetáculo visual. Tivemos uma experiência fantástica, mas é claro que nem ficamos na Vila Olímpica, não tivemos aquela vivência grandiosa nos Jogos. Tínhamos apenas um crachá que nos deu acesso ao ginásio”, recorda Rosane.

Foi justamente a elevação da Ginástica Rítmica ao patamar de esporte olímpico que forçou a mudança da nomenclatura da então Ginástica Olímpica, que passou a ser chamada de Ginástica Artística para atender à nova lógica.

Determinada a fazer parte de uma edição dos Jogos Olímpicos, com direito a credencial, cama na Vila Olímpica e diploma de participação, Rosane continuou treinando firme e conquistou a tão sonhada vaga no Mundial de Estrasburgo, na França.

A carioca caprichou e registrou notas na casa dos 9 em três dos quatro aparelhos: 9,300 no arco, 9,200 nas maças e 9 cravados na bola. Na fita, que reconhecidamente nunca foi o forte de Rosane, recebeu 8,800. “Ilone Peuker, nossa maravilhosa chefe de delegação, disse uma frase que me marcou profundamente: ‘agora posso morrer em paz’. Ela se sentiu realizada com as minhas notas. Graças a elas, pude receber o brevê internacional da FIG”. Na classificação geral, Rosane se posicionou como a 57ª do mundo, à frente de Maria Luisa Santos, 67ª, e Laura Monteiro, 91ª.

Mas não havia Lei Piva na época. Com recursos limitados, o então presidente do Comitê Olímpico Brasileiro, o Major Sylvio de Magalhães Padilha, não estava convencido de que Rosane devesse fazer parte da delegação olímpica que rumaria a Los Angeles.

Foi então que Rosane mais uma vez deixou a timidez de lado, para batalhar por sua vaga. “Todos os dias eu ia à sede do COB para reivindicar meu direito de ir à Olimpíada. Acabei ganhando o apoio do André Richer (ex-remador olímpico, ex-presidente do Flamengo e dirigente do COB na época), que, vendo minha insistência, acabou por me garantir que eu iria”.

Angustiada com a falta de uma confirmação oficial, Rosane só respirou aliviada quando recebeu, das repórteres da TV Globo Isabela Scalabrini e Glória Maria, a notícia de que seu nome estaria na terceira lista a ser divulgada.

Indicada pela Federação Internacional de Ginástica, Rosane foi a única representante da América do Sul em Los Angeles na modalidade. Ela gostaria de ter a companhia do pianista Ricardo Venâncio, que tocava as músicas das séries e até bordava collants, e pela treinadora Elisa Resende. A técnica, enviada para a Califórnia às custas da Confederação Brasileira de Ginástica para participar de um congresso técnico, pôde passar algumas orientações em treinos, mas, sem credencial, não podia se aproximar da ginasta durante a competição.

“A Rosane treina comigo há 11 anos. Estamos juntas em todas as competições importantes. Agora, quando a Ginástica Rítmica enfim é incluída na Olimpíada, ela fica sem a minha orientação e sem o apoio natural que só a presença do técnico dá”, disse Elisa ao jornal O Estado de S. Paulo, que enviou para aquela cobertura os repórteres João Pedro Nunes e José Maria de Aquino. O único treinador de Ginástica incluído na delegação era aquele que orientava Gérson Gnoatto, da Ginástica Artística Masculina.

“Botei na cabeça que seria minha própria treinadora, minha psicóloga, minha pianista, minha tudo. Iria na cara e na coragem”, diz Rosane, que gravou as músicas das séries numa fita k-7.

O Pavilhão Pauley estava longe das condições olímpicas ideais. O sistema de ar condicionado não obedecia às recomendações técnicas, bem como os holofotes. “A circulação do ar obrigava a gente a sair do percurso normal para pegar a fita. Teve até um jornal que publicou uma foto com a legenda ‘a noite em que as fitas se perderam’. E a iluminação não foi bem estudada. Quando lançávamos os aparelhos, dependendo do ângulo, a luz dos holofotes nos cegava”.

Mesmo assim, Rosane superou o nervosismo e as adversidades e registrou uma participação que a orgulha. “Enfrentei dificuldades. Fui alvo de muita pressão, mas essa experiência olímpica me proporcionou amadurecimento e crescimento em todos os aspectos”, diz a ex-ginasta, que hoje se dedica a pesquisas esportivas comandadas por um grupo de Herzogenaurach, a cidade alemã onde nasceram a Adidas e a Puma.

“Sinto que cumpri o meu papel. Grandes ginastas como Laura Monteiro, Clarice Pinto Lopes, Maria Luiza Santos e Laura Seixas, entre outras, prepararam o cenário para mim. Eu elevei as notas do Brasil: de 8 fomos para cima de 9. Elas tornaram a Ginástica Rítmica do Brasil mais conhecida, dei alguns passos à frente e os árbitros passaram a enxergar as brasileiras como donas de uma técnica um pouco melhor. Deixei uma boa imagem para as gerações que vieram depois, e elas aproveitaram aquele cenário. É assim que se constrói a GR de um país, tijolo sobre tijolo”, diz a pioneira da Ginástica Rítmica do Brasil em Jogos Olímpicos. O nome dela é Rosane Favilla.

 

 

 

   

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