Da Redação, São Paulo (SP)- João Luiz Ribeiro, João Levy, Hélio Araújo, Gilmárcio Sanchez, Reinaldo Calinsque e Luiz Braga. São esses os nomes dos seis atletas que finalmente colocaram a ginástica artística brasileira no pódio dos Jogos Pan-Americanos. Em quase 30 anos do evento poliesportivo mais importante das Américas, o Brasil ainda não sabia qual era o gostinho de uma medalha. Em 1979, com pouco investimento e muita garra, o sexteto soube se unir e, numa disputa emocionante com a Venezuela em San Juan, a capital porto-riquenha, deu início a uma história de conquistas que hoje impressiona.
Acompanhe mais um episódio da saga da ginástica brasileira que faz parte da série “Memória de Ouro CBG”. “Nosso esporte é individual, mas soubemos dar força um ao outro, e isso foi determinante. Mais de 50% da ginástica é um esporte mental”, diz Ribeiro, que seria o primeiro representante da ginástica brasileira numa Olimpíada, no ano seguinte, ao lado de Cláudia Magalhães Costa. Mas essa já é uma outra história.
Desbravadores do pódio
Em sete edições dos Jogos Pan-Americanos, o Brasil ainda não havia descoberto o caminho que leva às medalhas na ginástica artística. João Luiz Ribeiro, Calinsque, Luiz Braga, Trovão, Gilmárcio e Hélio Araújo o encontraram na oitava, em San Juan-79
A barra fixa tinha uma barriga para baixo, e estava instalada ao ar livre, bem como as argolas. O cavalo era “de museu”. Realizavam-se os exercícios de solo sobre um tatame de judô, feito de palha. Reinaldo Calinsque e Luiz Braga, dois dos seis integrantes da equipe brasileira de ginástica que disputou os Jogos Pan-Americanos de San Juan, em 1979, descrevem dessa forma as instalações em que treinavam, na Escola de Educação Física da Polícia Militar de São Paulo, a mais antiga do País, inaugurada em 1910. Não se tratava de condições de treino sonhadas, mas eles sonhavam assim mesmo.
“Nosso técnico era o Soldado Barreto. Ele fazia parte de uma equipe de demonstração da PM, que viajava pelo interior e fazia exibições como o trio de força. Usávamos umas técnicas de circo, e isso era um divertimento. Fazíamos coisas difíceis, mas sem técnica nenhuma”, recorda Braga, filho de um sargento da corporação, assim como Calinsque – que poderia se chamar Kalinsky, nome polonês que seu tio alterou em cartório.
Houve um momento em que Barreto adoeceu, e os dois jovens foram improvisando treinos ao longo de dois anos. Mesmo nessa precariedade, eles “tiravam da cartola”, para usar expressão circense, uma ginástica que chamou a atenção de Nestor Soares Publio, oficial da corporação que foi treinador da modalidade de 1960 a 89, passando pelo EEF-PM e Esporte Clube Pinheiros, além de dirigente da Federação Paulista de Ginástica por anos a fio.
A convite de Publio, a dupla passou a treinar no Pinheiros, clube que importou, em 1973, um treinador importantíssimo na história da ginástica brasileira: Kenshi Ohara, que integrou a seleção japonesa. Para se ter uma ideia da magnitude do nível do domínio nipônico na época, lembre-se que o país oriental conquistara 16 das 24 medalhas em disputa nos Jogos Olímpicos de Munique-1972.
Nas eliminatórias para aquela Olimpíada, Ohara, que ocupava a décima colocação no ranking internacional, rompeu ligamentos do joelho no salto sobre o cavalo. Ouviu dos dirigentes que estava fora dos planos como atleta. O nível de competitividade interno na ginástica japonesa era elevadíssimo, e não seria possível esperar por sua recuperação. Ainda bastante jovem, ele deu início à carreira de treinador.
Chegando ao Brasil, o obstinado oriental teve muito trabalho com os dois ginastas provenientes da academia policial. “A gente fazia tudo bem feio e torto, sem técnica”, recorda Calinsque. “O Ohara disse que teríamos que recomeçar do zero: fez uma limpeza técnica nos nossos movimentos, detalhe por detalhe”.
Não foi um processo dos mais simples. “O Ohara tentava aplicar aquela disciplina japonesa toda, mas logo viu que no Brasil ia ser complicado. A gente se divertia um bocado. Quando alguém batia a perna no alção do cavalo, por exemplo, dávamos muita risada. Ele não entendia aquilo e despejava muita bronca. Chegou a querer ir embora, achava que nós não éramos sérios. O Publio teve que tomar muita cerveja com ele, conversou bastante. A gente foi se adaptando também. Continuamos brincando, mas sem ser extravagantes. Depois de um tempo, até ele começou a dar risada. E constatou que a gente se esforçava, melhoramos significativamente”, diz Braga.
Na mesma época, treinavam no Pinheiros outros dois integrantes da equipe que faria história em San Juan, conquistando a primeira medalha da participação brasileira nos Jogos Pan-Americanos, iniciada em Buenos Aires-1951. Tratava-se do catarinense João Luiz Ribeiro, que havia passado antes pela Sogipa e pelo Tijuca Tênis Clube, e de João Levy, o Trovão.
“Minha família era sócia do Pinheiros. Praticava saltos ornamentais e, no inverno, eu e meus amigos fomos fazer ginástica olímpica. Havia coisas nos saltos ornamentais de que eu não gostava. A gente tinha que fazer algumas acrobacias com a cabeça passando muito perto da prancha. Já vi amigos batendo o rosto e a cabeça, era muito perigoso. Já no salto sobre o cavalo, o movimento era amplo, não corria aquele risco. Gostei da ginástica e vi que tinha jeito. Em seis meses já consegui ser campeão paulista infantil no salto”, diz Trovão, por telefone, com a voz tonitruante que explica seu apelido.
Ribeiro era um atleta em notável ascensão: no Mundial de Fort Worth, no Texas, em 79, iria se tornar o segundo ginasta brasileiro a tirar o brevê conferido pela FIG, a Federação Internacional de Ginástica. Era uma honraria que cabia a quem passava da média 9 em grandes competições. Com 9,0583 registrados, juntou-se a um clube que tinha apenas Lilian Carrascoza como sócia.
Na seleção brasileira, ao quarteto que treinava em São Paulo juntou-se uma dupla proveniente do Minas Tênis Clube, numa espécie de política do café com leite da ginástica: eram Hélio Araújo e Gilmárcio Sanchez, único dos medalhistas do Pan de 79 que a equipe de reportagem envolvida na garimpagem de histórias do “Memória de Ouro CBG” não conseguiu localizar.
Acostumado às limitações da ACM (Associação Cristã de Moços), onde tinha que montar e desmontar os aparelhos diariamente para liberar a quadra poliesportiva, Hélio se maravilhou com a estrutura do Minas. “Quando vi um ginásio só para nós, da ginástica, fiquei louco”, conta o ex-atleta.
Vivendo numa casa com 11 irmãos e sérias restrições orçamentárias, o garoto vibrou quando soube que ganharia uma ajuda de custo que equivaleria a uns R$ 300 de hoje, além de transporte entre a casa e o clube numa Kombi. “Com aquela grana eu já podia pagar a minha alimentação, o que era um alívio para a minha família”.
Esforços somados, a modalidade experimentava expressivo crescimento no País no final da década de 70. Prova disso foi o desempenho do Brasil em Fort Worth – a nota da equipe subiu 30 pontos em relação à edição anterior, disputada em Estrasburgo, na França, em 78, o que rendeu elogios da revista International Gymnast. “Nenhuma equipe do mundo havia até então registrado um progresso tão grande de um Mundial para o outro”, destaca Publio.
Trovão foi a Estrasburgo, primeira edição do Mundial de que o Brasil participou com equipe completa no masculino e no feminino. “Lembro que eu queria treinar uma série obrigatória. Quem queria ir ao Mundial tinha que treinar. O Ohara até me aconselhou a deixar pra lá, porque achava que o Brasil não enviaria equipe, por contenção de verba. Felizmente não dei ouvidos ao meu treinador e fiz o meu treinamento”.
Outro fator de motivação foi a realização da Copa do Mundo, no Ginásio do Ibirapuera, também em 78. Naquela competição, Trovão iniciou contatos valiosos. Graças a eles, obteve bolsa de estudos na Indiana State University. Lá treinava Kurt Thomas, que ficou famoso por ter-se sagrado, em Estrasburgo, o primeiro ginasta norte-americano a ser campeão mundial – foi ouro no solo.
Embora houvesse indicadores de que o nível técnico dos brasileiros subia, não estava garantida a ida de uma equipe completa masculina a Porto Rico. Avaliava-se que o conjunto feminino reunia maiores possibilidades de obter medalha. “Mas isso só fez despertar os brios dos nossos ginastas”, diz Publio, que atuou por 30 anos na Federação Paulista, em períodos como presidente, vice e diretor técnico. Ele é autor de “Evolução Histórica da Ginástica Olímpica” (Phorte Editora/Casa da Educação Física, 2Ed. 2000), o mais profundo mergulho na história da modalidade no País. A terceira edição, complementada em 2019 pela Casa da EF, – está disponível gratuitamente em: http://cev.org.br/biblioteca/evolução-historica-ginastica-olimpica-1/.
“Nossa presença em competições era sempre uma incerteza. Felizmente, pudemos comprovar nosso valor”, afirma Ribeiro – que seria, em 1980, o primeiro ginasta brasileiro numa edição dos Jogos Olímpicos, ao lado de Cláudia Magalhães Costa.
Embora a verba não fosse abundante, houve investimento em viagens para treinamento e participação em torneios na Alemanha e na Noruega em 79.
A ausência de pressão – afinal, pouco se esperava da equipe – parece ter contribuído para que os ginastas se exibissem com tranquilidade, como se estivessem disputando uma edição do Campeonato Brasileiro ou dos Jogos Estudantis. Quando o quinto e penúltimo rodízio de aparelhos estava para começar, os brasileiros, que desconheciam como estava a marcha do placar, levaram um susto bom – e se agarraram a suas esperanças.
“Estávamos sentados, descansando, quando o treinador (João) Arruda, encostado no alambrado, gritou que a gente tinha chance de medalha – estávamos dois décimos à frente da Venezuela”, diz Braga. Cuba, que paparia todas as medalhas de ouro da ginástica masculina naquele Pan, liderava o placar, seguida pelo Canadá.
“Sempre fui um ginasta individualista. Mas naquela hora baixou o espírito de equipe em mim. Via que os cubanos vibravam sempre que terminavam cada série, um incentivava o outro, batia no peito. Falei para a gente fazer igual. Disse que íamos nos unir e que iríamos acertar tudo. Tínhamos que render ao máximo, porque a disputa era pau a pau com a Venezuela”, diz Braga.
O duelo com os filhos da terra de Simón Bolívar não era fácil. Empurrado por uma economia que gozava de aportes auferidos pela extração de petróleo, bastante polpudos naquele final de década, o esporte venezuelano podia desfrutar de certos luxos – seus ginastas também tinham um treinador japonês a conduzi-los.
Ribeiro é outro que destaca a união da equipe, fundamental quando a disputa se acirrou. “Nosso esporte é individual, mas soubemos dar força um ao outro, e isso foi determinante. Mais de 50% da ginástica é mental”, diz o atleta olímpico, que vive há 40 anos nos Estados Unidos – possui duas academias de ginástica artística em Nova Jersey, onde atende um total de 800 crianças, empregando 80 funcionários.
Trovão esclarece que os EUA abriram mão da competição por equipes. “O Comitê Pan-Americano estipulou que as séries seriam simplificadas, que era para nivelar a competição. Os norte-americanos não toparam e optaram por se inscrever apenas nas disputas do individual geral e dos aparelhos. Se eles participassem, não teríamos chance. Mas isso em nada tira o valor das nossas medalhas. Quem não aparece, não ganha. Sou da opinião também que ninguém pode questionar o valor das medalhas dos Jogos Olímpicos de 80 e de 84, que tiveram boicotes”, diz o ginasta, cujo tom de voz lembra o baixo tocado por Geezer Butler, do Black Sabbath.
Braga lamenta até hoje que uma foto, tirada com a máquina de Calinsque, tenha se deteriorado com o tempo. No pódio, assim que soaram os últimos acordes do hino de Cuba, os seis campeões pan-americanos ergueram os braços, comemorando. O paulistano tratou de fazer o mesmo, o que gerou uma imagem curiosa. “Só dava eu e os cubanos festejando na foto. Alguém me disse que aquele momento era dos caras e que eu deveria me conter, mas era nosso também”, diz o medalhista.
Hélio Araújo curtiu a experiência do início até o final. “Aquele Pan entrou para minha história como a minha Olimpíada. Foi tudo mágico: o período de preparação no CEFAN (Centro de Educação Física Almirante Adalberto Nunes), no Rio, receber mala com roupa social, esportiva, collants, tênis, shorts, sapatos, andar na Vila Pan-Americana... Foi uma competição totalmente diferente de tudo o que eu havia disputado”, destaca o mineiro.
Depois da conquista, a festa em San Juan foi memorável – e quase não aconteceu para Calinsque. “Tinha 17 anos e o chefe de equipe, o coronel Hugo (Coelho), disse que eu não poderia sair, por ser menor de idade. Felizmente, nossa intérprete conversou com ele e acabei recebendo a autorização para comemorar fora da Vila”.
Mais de 40 anos depois da façanha, que inaugurou uma galeria de conquistas notável da ginástica artística nacional em Pans, os desbravadores do pódio cultivam saudades daqueles tempos – e carregam muito orgulho. “Tudo vai evoluindo, e a ginástica brasileira virou o que virou. Acho que deixamos uma sementinha. Sempre tem um início, e nós fomos a geração que abriu esse caminho”, diz Hélio, que fez carreira como professor de Educação Física em Belo Horizonte.
“O que me marcou mais nessa conquista é que ninguém esperava por ela. A expressão da nossa equipe não era grande. É por isso que o nosso ambiente ficou muito feliz. Chegamos ao aeroporto do Rio com muito orgulho, uniformizados e com a medalha no peito. Isso acabou chamando a atenção de um repórter. Era a hora de mostrar nossa conquista”, narra Calinsque, que nunca imaginou, em sua adolescência, que suas brincadeiras circenses virariam coisa tão marcante.
Com apoio da Prefeitura do Recife, competição será realizada entre os dias 31 de agosto e 7 de setembro, no Ginásio de Esportes Geraldo Magalhães (Geraldão)
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